segunda-feira, 12 de setembro de 2011

Etnização e sustentabilidade: novas ou velhas formas de exploração da força de trabalho?

Por Elias Lopes de Lima
 

  

A ideia mais recorrente quando nos deparamos com o cenário da expansão global do capitalismo é a de que a força de trabalho mundial estaria se proletarizando, inclusive os mais variados grupos nativos do mundo inteiro classificados pejorativamente como sociedades pré-capitalistas. De fato, ao largo do processo de desenvolvimento do capitalismo houve uma proletarização sempre crescente da força de trabalho, e quanto a isso não há nenhuma surpresa. O que surpreende, no entanto, avalia Wallerstein (2001, p. 22), é que este crescimento da classe operária tenha sido mais baixo que as mais modestas expectativas, considerando que este modo de produção existe a pelo menos quatrocentos anos (sem querer entrar no mérito desta datação), além de ter se expandido por todo o globo. Em 2004 a OIT (Organização Internacional do Trabalho ) divulgou um total de 2,8 bilhões de trabalhadores no mundo, dos quais a metade, 1,4 bilhões, estava abaixo da linha da pobreza, recebendo menos de dois dólares por dia. A partir desses dados podemos estimar que, na melhor das hipóteses, a força de trabalho realmente proletária não ultrapasse um terço da população mundial, considerando as altas taxas de urbanização em boa parte do planeta. 

Tudo leva a crer que esta contenção do crescimento da força de trabalho proletária foi deliberadamente induzida, de vez que ela entra no cálculo do capitalista para fins de expansão da mais-valia relativa. Se a proletarização efetiva da mão-de-obra gera lucros consideráveis para a acumulação capitalista, não há o que negar, a utilização de força de trabalho não-proletária combinada e adequadamente distribuída com a proletária, ou seja, convertida em semiproletária, é ainda mais vantajosa. 

Os capitalistas parecem não subestimar as estimativas de Marx no tocante ao esgotamento da sociedade capitalista mediante a dedicação exclusiva das classes e principalmente das que compõem a força de trabalho nos processos produtivos, já que canalizam todos os seus esforços para impedir esta integração efetiva. “Como regra geral, os empregadores de trabalho assalariado preferiam recrutar trabalhadores assalariados em unidades domiciliares semiproletárias, em vez de proletárias”, confirma Wallerstein (ibid., p. 26). 

O operário é o trabalhador que vive praticamente em função de sua jornada de trabalho diária. O trabalho sob esse aspecto é tanto o seu meio de subsistência quanto o seu próprio estilo de vida, a condição de seu ser. Deduzida a mais-valia do fruto de seu labor, o seu rendimento tem que garantir minimamente a sua subsistência para que o ciclo de reprodução do capital possa se prolongar, ou seja, o capital tem que suster as condições necessárias para a reprodução da força de trabalho necessária à sua própria reprodução (acumulação). Já a força de trabalho semiproletária não se reproduz em função do capital, ela compatibiliza o trabalho explorado pelo capitalista, que tem um papel secundário como fonte de renda, com atividades domiciliares, biscates, a pequena lavoura familiar, trabalhos manuais ocasionais, o emprego dos filhos em atividades ambulantes e informais, atividades que no conjunto garantem a reprodução da mão-de-obra, despesa esta que não entra no cálculo de custos do empregador. 

Além das consequências políticas advindas da organização proletária – sabidamente com um nível de coesão e consciência de classe melhor estruturadas que outras organizações de trabalhadores, tendo, inclusive na greve (mais associada ao operariado) um instrumento legítimo de pressão e reivindicação por melhorias nas condições de trabalho –, a proletarização das unidades domiciliares e semiproletárias acarretaria um aumento no nível geral do salário mínimo real pago pelos empregadores. A longo prazo, a proletarização desses grupos tenderia a aumentar ainda mais sua participação no excedente auferido, seja pelo nível de qualificação alcançado ou de uma demanda superior à oferta em uma ocupação específica, seja por meio de uma eficiente e influente organização sindical.

O controle da expansão da força de trabalho proletária contou com o emprego de mecanismos disciplinares sutis e sofisticados, erodindo a possibilidade dos pobres assumir o controle de suas vidas num grau inédito na história, reconhece Lander (2005, p. 43). A principal estratégia adotada para tanto foi a racionalização científica das desigualdades através, principalmente, do racismo e do sexismo. A divisão do trabalho de acordo com diferenças de gênero e grupos étnicos bem definidos, com papeis ocupacionais específicos na distribuição da força de trabalho e com níveis de remuneração variáveis de modo a manter um certo padrão de desigualdade, assim como a relocalização ou desconcentração da produção de atividades inferiores compatíveis com as estruturas de reprodução domiciliares no âmbito de uma divisão do trabalho, sempre foi menos uma estratégia de proletarização da mão-de-obra do que de desproletarização. 

A etnização não é uma prática recente. Seu núcleo embrionário pode ser localizado ao longo do período de acumulação primitiva. Mas é óbvio que o seu vínculo com as classes operárias no interior dos mecanismos de compensação de custos produtivos teria que aguardar um pouco mais, à espera de que se consolidasse a força de trabalho livre. Na verdade, o modo como a etnização é utilizada hoje para controlar a força de trabalho parece fechar um ciclo iniciado com a adoção da força de trabalho escrava nas Américas. Saint-Simon (apud. QUIJANO, 2010, p. 102) ilustra bem a abertura deste ciclo ao afirmar que “a relação do patrão com o assalariado é a última transformação que sofreu a escravidão”, diríamos metafrazeando-o que a etnização hodierna é a última transformação que sofreu o trabalho livre. Claro que esta afirmação se reveste de um tom de ironia, pois nas regiões periféricas onde predominam essas relações de trabalho a exploração acentuada pelo preconceito e o racismo nunca deixaram de existir.  

O trabalho livre coexiste com o preconceito étnico-racial e sexual a mais de duzentos anos, sobretudo nas zonas menos valorizadas da cadeia global de produção. E, no entanto, o conteúdo étnico-racial das relações de trabalho sempre permaneceu implícito senão completamente negligenciado pelas correntes teóricas trabalhistas, limitando-se a contemplar a relação capital-trabalho. O caráter secular de que se revestem alguns dos princípios fundamentais da análise crítica da sociedade capitalista, como o ideal de progresso, por exemplo, incapacita de compreender que o capitalismo conviveu e ainda convive com outras formas de exploração do trabalho além do trabalho livre e assalariado, e, portanto, que se tome a ideia de raça e etnia à guisa de um escrutínio objetivo num contexto de economia capitalista, pois, para todos efeitos, sob a ótica eurocêntrica seriam temas extemporâneos entre si. 

O aspecto étnico-racial da força de trabalho na periferia capitalista sempre foi uma evidência espaço-temporalmente presente a outras formas de exploração do trabalho, embora o logocentrismo europeu de um modo geral sempre o tenha considerado ausente ou, quando muito, o associou ao passado, à formas pré-capitalistas de produção ou mesmo à natureza. De acordo com Mariátegui (2008, p. 57), “a suposição de que o problema indígena é um problema étnico se nutre do repertório mais envelhecido das ideias imperialistas. O conceito de raças inferiores serviu ao Ocidente branco para sua obra de expansão e conquista”. Logo, este tipo de força de trabalho estaria passível de ser esquecida, explorada ou apropriada, pois retrata a imagem do atrasado, do rudimentar, do selvagem, qualificado sempre como inferior (incluindo nesta estigmatização os lugares ou regiões do planeta a ela associados) e, portanto, indigno de merecer uma análise sistemática mais rigorosa, a não ser a título de estudos etnográficos.


Mas não se trata mais de impactar de imediato o modus vivendi das populações cooptadas como força de trabalho, não convém então empreender cercamentos ou outras formas de expropriação territorial, mas acima de tudo manter a economia doméstica de subsistência responsável pela manutenção do grupo ou indivíduo.

Poder-se-ia, neste caso, depreender que a apropriação do discurso ecológico na defesa da apropriação parcial e sustentável da força de trabalho das populações indígenas e outros povos da floresta, preservando seus costumes e hábitos imemoriais, segue na mesma linha de exploração da força de trabalho das economias domésticas e semiproletarizadas. Mudou-se apenas uma nomenclatura já desgastada por uma outra mais polida: racialidade por sustentabilidade. Com a vantagem de contar com o beneplácito de toda a sociedade, que aprova a exploração (ao longo prazo predatória) das populações nativas em prol de um ideal romântico de natureza e por isso não se importam de pagar o valor agregado pelo teor “ecologicamente correto” nas mercadorias então produzidas. Em que pese também o cinismo de trazer implícito no conceito de “desenvolvimento sustentável” uma conotação, muito dissimulada é verdade, das ideias de raça e etnia, uma vez que o mesmo só se legitima se aplicado às populações nativas com traço étnico bem marcado. O que dizer da sustentabilidade das massas urbanas miseráveis de todo o planeta? E a que preço aqueles povos estão sendo reconhecidos ou valorizados?

Referências Bibliográficas

LANDER, Edgardo. “Ciências Sociais: saberes coloniais e eurocêntricos”. In: LANDER, Edgardo (org.). A Colonialidade do Saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: CLACSO, 2005.
MARIÁTEGUI, José Carlos. Sete Ensaios de Interpretação da Realidade Peruana. São Paulo: Expressão Popular, CLACSO, 2008.
QUIJANO, Aníbal. “Colonialidade do Poder e Classificação Social”. In: SANTOS, Boaventura de Souza e MENEZES, Maria Paula (orgs.). Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez, 2010.
WALLERSTEIN, Immanuel. Capitalismo Histórico e Civilização Capitalista. Rio de Janeiro: Contraponto, 2001. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário