terça-feira, 20 de setembro de 2011

Ideal de ensino libertário continua contribuindo com aprendizagem

“Defendo a educação desocultadora de verdades. Educando e educadores funcionando como sujeitos para desvendar o mundo”, dizia Freire

Por Desirèe Luíse

Na busca do ideal de educação fundamentada na democracia e na tolerância, Paulo Freire fez história. Em pleno século XXI, a proposta do educador brasileiro está presente tanto no legado de suas obras como na atualidade de seu pensamento. Nesta segunda-feira (19/9), Paulo Freire completaria 90 anos. Comemorações do seu nascimento acontecem desde o início do ano em todo o país.

Internacionalmente respeitado, os livros do educador foram traduzidos em mais de 20 línguas. No Brasil, tornou-se um clássico, obrigatório para qualquer estudante de pedagogia ou pesquisador de educação. Detentor de pelo menos 40 títulos honoris causa (por universidades a pessoas consideradas notáveis), Freire recebeu prêmios como Educação para a Paz (Nações Unidas, 1986) e Educador dos Continentes (Organização dos Estados Americanos, 1992).

“Defendo a educação desocultadora de verdades. Educando e educadores funcionando como sujeitos para desvendar o mundo”, dizia Freire.
 
A educação como prática da liberdade, defendida por ele, enxerga o educando como sujeito da história, tendo o diálogo e a troca como traço essencial no desenvolvimento da consciência crítica.

Uma pesquisa sobre o educador feita em escolas públicas de São Paulo a partir dos anos 90, pela Cátedra Paulo Freire (PUC-SP), constatou que aquelas baseadas em gestões democráticas são as que mais se aproximam do pensamento freireano. “Suas reflexões servem de base para discutir os desafios do mundo”, afirma a coordenadora da Cátedra, Ana Maria Saul, que trabalhou com o educador entre 1980 e 1997.

Freire se mantém presente também na universidade. Uma consulta na Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) revela que entre 1987 e 2010, 1441 pesquisas tiveram como referencial o educador – 75% na área das ciências humanas, 19% na biológicas e 6% na exatas. “Esses números, que têm crescido a cada ano, e a diversidade de áreas mostram como é fértil a reflexão de Paulo”, aponta Ana Maria.

Atualidade do pensamento
“Ele usava o passado para interpretar melhor o presente. Tenho certeza que Paulo já estava no século XXI pelos questionamentos que colocava. Dizia: ‘se vocês concordam comigo, não me repitam, recriem’”, lembra a coordenadora da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP), Lisete Arelaro. Ela trabalhou com Freire durante os anos 90 e ministra a disciplina eletiva “Paulo Freire: Teoria e Práxis”.

A atualidade do autor é comprovada, por exemplo, em uma das questões que mais perturba a educação pública hoje: o uso de apostilas como o único material didático. “Discordo de separar pacotes para o professor dar aulas, com materiais distantes da realidade. Precisamos da curiosidade crítica”, questionou Freire certa vez.

“Paulo falava que não existe uma teoria científica dizendo que o aprendizado pode acontecer apenas de um determinado jeito, ou parâmetros regulando o que cada criança deve debater no Pará, Rio Grande do Sul, São Paulo e Bahia, sem os contextos de cada uma”, diz Lisete. “Se vivo estivesse, faria uma campanha na rua, porque isso compromete o ato de aprender”, analisa.

Antes de conhecer, o sujeito se interessa pelo o que é curioso e esperançoso, dizia Freire. “Daí a importância de trabalhar a sedução do professor frente ao aluno, a motivação e o encantamento”, pontua  o diretor do Instituto Paulo Freire, Moacir Gadotti, que conviveu 23 anos com o educador.

É preciso mostrar que “aprender é gostoso, mas exige esforço”, segundo o educador no primeiro documento que encaminhou aos professores quando assumiu a Secretaria de Educação do Município de São Paulo (1989-1991). Hoje, um dos maiores problemas do ensino médio é a evasão escolar. Cerca de 40% dos jovens abandonam a última etapa da educação básica por desinteresse, apontam pesquisas.

Em conferências para professores, Gadotti identificou que há uma ânsia por entender melhor porque está tão difícil educar, para saber o que fazer quando todas as receitas já não conseguem responder. “Professores procuram cada vez mais cursos e conferências, para buscar na formação continuada respostas que não encontram na formação inicial”, afirmou em artigo "A atualidade de Paulo Freire"

O educador  dava muita importância para o ato de ensinar e aprender de forma horizontalizada. “Quem ensina aprende ao ensinar e quem aprende ensina ao aprender”, reflete Freire em sua obra “Pedagogia da Autonomia”. Segundo ele, não só a participação dos alunos na sala de aula é bem-vinda, mas no conjunto de assuntos que envolvem toda a escola.

“A gestão democrática fundamenta toda a sua teoria do conhecimento. A ideia é ter diferentes grupos para opinarem e construírem. Para ele, todos os espaços de convivência educam para adquirir nossa autonomia intelectual”, ressalta Lisete. “Estamos em momentos difíceis. Cada dia mais indo contra isso. A divergência da teoria do outro não tem gerado um debate saudável.”

Com suas ideias inovadoras, Paulo Freire também incomodava muito. Mesmo atualmente, é questionado pelo incentivo a uma “pedagogia sem hierarquia”. Uma das razões é sua proposta do uso da crítica como referência principal para a escola avaliar a importância do conteúdo ensinado.

“No momento em que estamos discutindo a homogeinização de currículos pedagógicos, em função de provas nacionais, estaduais e municipais, evidentemente que Paulo representa uma contra corrente”, afirma Lisete. No Plano Nacional de Educação (PNE), em análise no Congresso, está previsto a incorporação do Programa Internacional de Avaliações de Alunos (Pisa) como referência de avaliação.

Freire questionaria, ainda, o processo de bonificação dos professores tendo em vista o rendimento dos alunos em provas nacionais e estaduais, de acordo com Lisete. “Para tudo isso ele não só sorriria, mas diria que é um grande equívoco”, acredita.

Biografia
 Paulo Reglus Neves Freire nasceu em Recife (PE), teve dois casamentos e cinco filhos. Formou-se em direito, mas começou sua vida profissional como professor de língua portuguesa.

Quando criança, depois de passar fome por causa da crise de 1929, mudou-se de Recife para o interior. Foi em Jaboatão – 18 km da capital pernambucana – que o contato com a pobreza ficou mais forte. “Lá, aprendi, em primeiro lugar, a ampliar o meu mundo. Fiz amigos filhos de camponeses ou trabalhadores urbanos”, conta Freire em depoimento para o Museu da Pessoa em 1992.

“Eu me perguntava e tentava entender porque eu não comia e os outros comiam. Quer dizer, desde tenra idade eu me preparava para me opor às injustiças sociais. Quando adulto, comecei a me lançar no esforço político-pedagógico e então tudo isso veio à tona.”

Sem oportunidades, ele entrou tarde na escola. Enquanto colegas se preparavam para a universidade, Freire, aos 16 anos, começou a estudar o primeiro ano do antigo ginásio – correspondente ao 5º ano do ensino fundamental. “Mas, não acho que perdi tempo. Eu estava educando-me no mundo.”

A partir de suas primeiras experiências como professor, em Angicos (RN), em 1963, quando ensinou 300 adultos a ler e a escrever em dois meses, Paulo Freire desenvolveu um método inovador de alfabetização. Então, um dos ministros do governo João Goulart, Paulo de Tarso, o chamou para implantar o Plano de Alfabetização Nacional, que acabou sendo abortado pelo golpe militar.

Acusado de subversão, o educador passou 72 dias na prisão e, em seguida, partiu para o exílio. No Chile, trabalhou por cinco anos no Instituto Chileno para a Reforma Agrária. Nesse período, escreveu o seu principal livro: Pedagogia do Oprimido (1968). Em 1969, lecionou na Universidade de Harvard (EUA), e, na década de 1970, foi consultor do Conselho Mundial das Igrejas, em Genebra (Suíça).

Em 1980, depois de 16 anos de exílio, retornou ao Brasil. Lecionou na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Em 1989, foi secretário de Educação no município de São Paulo, na prefeitura de Luíza Erundina.

Após a morte de sua primeira mulher, casou-se com uma ex-aluna, Ana Maria Araújo Freire. Com ela viveu até morrer, vítima de infarto, em São Paulo, no dia 2 de maio de 1997, aos 75 anos.

O homem
“Quando Erundina o chamou para ser secretario, vi a coerência de seu pensamento e sua prática”, lembra a coordenadora da Cátedra, Ana Maria Seul. Lisete Arelaro concorda: “Ele faz muita falta, era extremamente bem humorado e tinha uma tranquilidade por sua coerência. Produziu seus conhecimentos para os condenados da terra e esfarrapados do mundo”.

“Se vivo fosse, seria um velhinho bondoso. Foi um homem que sabia escutar. A sabedoria que tinha é consequência do que construiu nele mesmo: as virtudes mais humanas”, diz a viúva do educador, Ana Maria Freire, autora do livro “Paulo Freire – Uma História de Vida”.

Ao se perguntar se Paulo nasceu com os pontos positivos ressaltados por aqueles que conviveram com ele, Ana Maria responde: “Ele dizia que nascemos com algumas tendências. O que nos faz ser isso ou aquilo são as condições sociais na família, escola e sociedade. Ele não teria sido o que foi sem Jabotão”.

Paulo Freire do futuro
O educador centrou suas análises na relação entre educação e vida, reagindo às pedagogias tecnicistas de seu tempo. “Gostaria de ser lembrado como alguém que amou a vida”, disse duas semanas antes de falecer, em entrevista à emissora Globo.

“Creio que o reconhecimento da importância de sua obra no campo da educação acontecerá quando a escola deixar de ser confinada no seu espaço para reconhecer a educação ao longo da vida, o que significa reconhecer que ela é essencialmente informal. Freire não pode ser considerado uma contribuição ao passado, mas ao futuro”, conclui o diretor do Instituto Paulo Freire, Gadotti.

As lições que Paulo Freire deixou devem mesmo continuar válidas por muito tempo. “O meu sonho pela liberdade me estimula a lutar pela justiça, pelo respeito ao outro e à diferença. Quer dizer, meu sonho é que inventemos uma sociedade menos feia do que a nossa de hoje”, disse em 1992.


segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Quando começa a vida?

A primeira batida cardíaca marca o início de uma integração sistêmica, a comunicação entre órgãos

Por Marcelo Gleiser

Minha esposa está para ter um bebê a qualquer momento. Aliás, quando você ler essa coluna, é muito possível que o bebê já tenha nascido. Inspirado por isso, nas últimas 39 semanas venho ponderando a questão do início da vida.

Quando, exatamente, a vida começa? Não me refiro ao início da vida na Terra, algo que pesquiso em meu trabalho, mas ao começo da vida de um indivíduo humano, esse tópico controverso que alimenta a grande polêmica entre quem é contra ou a favor do aborto.

Como sou físico e não médico ou especialista em bioética, apresento apenas algumas possibilidades que, espero, incitem mais debates.

Começando do começo: na concepção, temos a junção do espermatozoide e do óvulo. O zigoto é resultado do abraço bioquímico de 46 cromossomos, 23 do pai e 23 da mãe.

É possível argumentar que a vida começa antes da fertilização. Se o esperma "nada" em direção ao óvulo, há um propósito. Mas podemos equacionar vida com um propósito?

Após a fertilização, o zigoto implanta-se na parede uterina e começa a se desenvolver. Este é o blastocisto, de onde as células-tronco podem ser extraídas. Uma incrível dança hormonal ocorre. Após cinco semanas, há um tubo neural e primórdios de coração e outros órgãos. Começa aqui o período embrionário.

Em seis semanas, a coisa acelera: o embrião pode mover suas costas e pescoço. O batimento cardíaco passa a ser detectado via ultrassom em torno de seis semanas. Há fontes que colocam o início do pulso cardíaco ainda antes, em torno de três semanas após a concepção.

Essa transição é, para mim, fantástica. Um amontoado minúsculo de células já tem um sistema nervoso primitivo, que ordena um coração primitivo a pulsar! Como, exatamente, isso ocorre? A primeira batida cardíaca marca a transição entre algo em que células estão se dividindo para algo em que existe uma integração sistêmica, órgãos se comunicando. É aqui que começa?

Em oito semanas, o embrião tem "tudo" de um adulto. É o início da fase fetal, um ser proto-humano, ou já humano, com um coração e cérebro. Por outro lado, sua sobrevivência depende da placenta.

Outra transição acontece quando o feto pode sobreviver independentemente da mãe. Mas quando isso ocorre?

Devido aos avanços na medicina neonatal, 80% dos bebês prematuros de 26 semanas conseguem hoje sobreviver. Com o avanço da tecnologia, essa sobrevivência será ainda maior.

Portanto, essa transição depende da tecnologia.

Finalmente: quando surge o consciente? No útero, no nascimento ou durante a infância? Deixando de lado a questão de como definir o consciente, eletroencefalogramas de fetos no 3º trimestre já revelam uma integração entre os dois hemisférios cerebrais, uma condição importante para a formação do consciente.

Talvez seja o choque do nascimento, quando o bebê é forçado a respirar por si só e a interagir com um ambiente completamente diverso, que desperta o consciente. Ou talvez não exista uma resposta para essa questão, apenas interpretações do que significa vida em estágios diversos de desenvolvimento.

De qualquer forma, tenho de terminar isso, pois preciso arrumar o quarto do bebê que está por vir.
 
Marcelo Gleiser é professor de física teórica no Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor de "Criação Imperfeita". Facebook: 

Ato-relâmpago é tática da oposição Síria

Na capital, Damasco, jovens fazem protestos rápidos e localizados, marcados pela internet, para fugir da repressão

Regras incluem nunca andar em grupos com mais de 3 pessoas e comunicar local apenas uma hora antes do ato

Por Marcel Ninio 

Mulher síria que vive na Jordânia mostra 
as mãos onde se lê "[cidade de] Hama sangra"
Avenida 29 de Maio, 18h30. O movimento na região central de Damasco parece o de sempre, a não ser pelo repentino fluxo de jovens vindos de ambas as direções. A ausência de forças de segurança torna o momento e o local adequados para mais um "protesto-relâmpago". 

A comunicação baseia-se em olhares e gestos cuidadosos. Dois ativistas comandam a operação em uma tentativa de surpreender o regime, numa área considerada porto seguro do governo.

Mas a cinco minutos do horário pretendido, um gesto brusco do recém-formado em engenharia da computação Ahmad, 22 (nome fictício, assim como todos nesse texto), indica que não há contingente para levar o plano à frente. 

E da mesma maneira que apareceram, os cerca de 40 jovens se dispersam para a próxima tentativa. A forte repressão do governo obrigou os ativistas damascenos a reinventar suas estratégias. 
 
"Se não estamos conseguindo protestar nas sextas-feiras por causa da segurança, se não podemos organizar manifestações pela internet porque estão nos vigiando, decidimos tentar algo no estilo das 'flash mob', em dias e horários que eles não esperam", conta. 

Um jornalista local que colaborou com a Folha nesta reportagem e pediu para não ser identificado enumera as precauções, passadas na base do boca a boca: nunca andar em grupos com mais de três pessoas, só comunicar o local pessoalmente e uma hora antes, não protestar em menos de 50 pessoas e não permanecer no local por mais de cinco minutos.

"Quando não seguimos esses passos, fomos massacrados pelos shabihas [força de segurança paralela]", explica o ativista Dishad, 21. "Mas agora está funcionando bem", comemora. 

As regras são criadas na base de tentativa e erro. Duas semanas antes, um grupo com 30 integrantes protestou com faixas e cartazes na turística avenida Al Qeimarie, no coração de Damasco, ao lado da mesquita Umayyad e do mercado Hamidye, o maior da cidade.

Em menos de três minutos, agentes de segurança irromperam no local agredindo os manifestantes com cadeiras, cassetetes, pedaços de madeira e outros objetos improvisados de armas.
"Eles já sabiam do protesto, as informações vazaram no Facebook. Quase todos foram presos, apanharam muito, inclusive as meninas que estavam junto", conta Dishad, um dos poucos que conseguiram escapar ilesos da manifestação. 

ESCRITÓRIOS SECRETOS
A relação entre os ativistas é quase tão efêmera quanto os protestos. Murad, que conheceu Ahmad e o apresentou a Mohammed, já trocou de número três vezes nas últimas semanas e está atuando em outra região. 

A prisão de um outro ativista, Rashad, preocupa a todos porque ele pode acabar delatando os demais, sob coerção ou tortura. 

"Quando você começa a criar uma amizade de verdade, depois de duas ou três semanas passando juntos pelas situações mais apavorantes é hora de se afastar", diz um ativista. "Mas temos que pensar no objetivo de todos, derrubar essa ditadura."

Desde o início dos protestos, ativistas tentam se organizar por meio de escritórios secretos em todo o país.
Eles são montados por colaboradores com maiores possibilidades financeiras ou de captação de recursos e oferecem estrutura de telefone, internet, além de espaço físico para reuniões. 

Com seis meses de revolução, diversos comitês locais foram montados pelo país, e há um intercâmbio de informação permanente. 

As ações realizadas vão da elaboração de listas com nomes e fotos de manifestantes mortos pelo governo ao suporte para organização de protestos, passando pelo fornecimento de softwares de navegação anônima e contato com lideranças oposicionistas dentro e fora do país.

O sonho de Descartes

Por que somos todos cartesianos

RESUMO
Se a história da ciência não trilhou o caminho proposto pelo pensador -a matemática já não é fonte de certezas; tanto a física newtoniana e quântica como a biologia da rwiniana escapam a seu sistema-, sua obra mostra um notável esforço científico e filosófico, que permitiu, por exemplo, a tradução algébrica da geometria.

CÉSAR BENJAMIN

DEZ DE NOVEMBRO de 1619. Trancado sozinho em um quatro aquecido, que ele chama de "estufa", sentindo a chegada do inverno alemão, um homem vive intensa excitação intelectual. "Fatigou-se de tal maneira", conta Adrien Baillet, seu primeiro biógrafo, "que seu cérebro se incendiou, entregando-se a uma espécie de frenesi". Deita-se e tem três sonhos em sequência, nos quais, ao acordar, reconhece uma missão. Implora a Deus e à Virgem que o mantenham no reto caminho para realizar a descoberta que havia antevisto.

O homem é René Descartes, então com 23 anos. Recebe em sonhos a missão de bem conduzir sua razão, e o que pede aos céus é confiança em si mesmo.

Começa então uma jornada que podemos acompanhar em detalhes, pois toda a sua obra e grande parte de sua prolífica correspondência foram preservadas. Para quem quiser conhecê-las, é leitura imprescindível a ótima edição das "Obras Escolhidas" [Perspectiva, trad. Bento Prado Júnior, 752 págs., R$ 110] que acaba de ser reimpressa, ampliada, com organização de J. Guinsburg, Roberto Romano e Newton Cunha.

FORMAÇÃO Filho de uma família ilustrada, Descartes passou nove anos no colégio jesuíta de La Flèche, onde teve boa formação intelectual. Mas saiu insatisfeito, em busca de novos caminhos: "Embora a filosofia tenha sido cultivada pelos espíritos mais excelentes que já viveram, nada há que não seja objeto de disputa e duvidoso". A busca do conhecimento certo exigia "destruir tudo e começar de novo dos fundamentos, [...] uma tarefa interminável, muito além da capacidade de uma só pessoa". Sabe disso, mas se lança: desliga-se aos poucos das obrigações do mundo, adota comportamento prudente e reservado, concentra-se nos pensamentos, decide viver na Holanda, relativamente isolado. Escreve vasta obra que não separa metafísica, filosofia e ciência. Morre em 1667, aos 53 anos.

John Cottingam, no "Dicionário Descartes" [Zahar, trad. Helena Martins, 177 págs., 1995, esgotado], apresenta um resumo do que ele fez: "Tentou resolver os grandes problemas estruturais da metafísica e da epistemologia, criou uma teoria geral sobre a natureza e as origens do mundo físico, elaborou um trabalho detalhado em matemática pura e aplicada, escreveu tratados em mecânica e em fisiologia, investigou a natureza do homem e as relações entre mente e corpo, e publicou reflexões abrangentes em psicologia e em ética". Esforço semelhante para criar um sistema tão completo de conhecimento não se via desde Aristóteles. Tentemos acompanhá-lo.

DÚVIDA Para não correr o risco de se enganar, Descartes decide considerar falso o que é só verossímil. Começa, pois, por submeter tudo à dúvida: "Suponho que todas as coisas que vejo são falsas. Fixo-me bem que nada existiu de tudo o que minha memória me representa. Penso não ter nenhum órgão de sentidos. Creio que o corpo, a figura, a extensão, o movimento e o lugar são invenções do meu espírito. Então, o que posso considerar verdadeiro?".

Não é uma dúvida psicológica, nem a dúvida dos céticos. Ao contrário. Essa dúvida hiperbólica está a serviço de fortalecer um espírito que busca a certeza. Eis o que resta: "Embora eu quisesse pensar que tudo era falso, era preciso necessariamente que eu, que assim pensava, fosse alguma coisa. Observando que essa verdade, 'penso, logo sou', era tão firme e sólida que nenhuma das mais extravagantes hipóteses dos céticos seria capaz de abalá-la, julguei que podia aceitá-la como o princípio primeiro da filosofia que procurava".

O ponto de partida firme, pois, é a consciência de si como ser pensante, o famoso "cogito" que santo Agostinho propusera bem antes, na "Cidade de Deus". Como sair dele? Como estabelecer, seguramente, que o mundo exterior também existe e não é apenas uma ilusão desse eu? É um salto muito difícil. Descartes, como Agostinho, só consegue realizá-lo passando pela ideia de Deus.

Pois esse eu que existe é um ser finito, imperfeito e, acima de tudo, contingente, como contingente é tudo o que o cerca: eu existo porque meus pais existiram e se conheceram, essa mesa de madeira existe porque existiu uma árvore, que por sua vez nasceu de uma semente, e assim por diante.

Não adianta caminhar para trás, nessa via, se quisermos encontrar a explicação última do mundo: realidades contingentes sempre dependem de outras realidades contingentes, em regressão infinita. Nossa mente só encontra repouso quando propõe a existência de um ser de outro tipo: infinito, perfeito e necessário . Existe esse ser? Sim, por definição, pois a existência é um atributo da perfeição: um ser perfeito inexistente é uma contradição em termos. É o argumento ontológico de santo Anselmo.

RAZÃO No ato de criar o mundo, esse ser necessário fixou as leis de seu funcionamento, para que a criação perdurasse. Com o uso da razão, que nos deu, podemos descobri-las. A razão pressupõe a liberdade, pois o sujeito só pode atingir a verdade se o esforço de conhecimento não for constrangido por nenhuma autoridade externa que lhe imponha limites, e a liberdade pressupõe a razão, pois ser livre é poder agir de acordo com o conhecimento da verdade.

É uma reviravolta: em nome de Deus, por muito tempo, tentou-se bloquear o desenvolvimento da ciência; agora ele aparece como fiador dessa empreitada. Sendo nosso criador, assegura que a razão e nossas demais faculdades podem cumprir suas funções; sendo perfeito, não nos engana. Ele é a garantia suprema da correspondência entre realidade e razão, pois fundou e sustenta a racionalidade do mundo.

Contrariando o atual senso comum, Descartes conclui que não é possível que um ateu seja homem de ciência, pois não deve confiar na razão quem não crê na realidade última que a legitima.

Poderia a razão assumir tão elevado papel? O pensamento tradicional, ancorado na revelação, era seguro de si. Faltava demonstrar que um novo pensamento sistemático poderia encontrar um caminho próprio para descobrir a verdade, construindo uma consistente teia de conceitos, com princípios e normas universais que não fossem mera opinião. Imensa tarefa.

O simples acúmulo de evidências empíricas jamais poderia estruturar um conhecimento alternativo e firme. Quem poderia fazê-lo era o método. Era preciso trabalhar com ideias claras e distintas, articuladas segundo regras igualmente claras de análise e de síntese, "graças às quais todos quanto as observem jamais possam supor verdadeiro o que é falso e cheguem ao conhecimento sem se fatigar com esforços inúteis".

A matemática mostrava o caminho: "As longas cadeias de raciocínios simples e fáceis, que os geômetras usam para chegar às suas demonstrações mais difíceis, me fazem supor que todas as coisas que caem no escopo do conhecimento humano interligam-se da mesma maneira."

CERA Seguro da própria existência, confiante na racionalidade do mundo e na capacidade do homem, Descartes pode agora tentar conhecer os objetos naturais. Avança com prudência para evitar o erro. Pega um pedaço de cera: "Aproximo-o do fogo e mudo sua consistência. Mantenho-o aquecido até ver desaparecer cor e odor. Transforma-se em fumaça. A mesma cera permanece após as mudanças? Cumpre reconhecer que permanece".

Mas o que permanece? Não cor, sabor, consistência e demais propriedades qualitativas, que se mostraram transitórias. Só permanece uma forma indeterminada que contém todas as formas possíveis. A única propriedade objetiva das coisas é serem extensas, propriedade que se conserva mesmo nas deformações.

Se matéria é extensão, conhecê-la é medi-la para ordená-la. Deve ser possível construir uma ciência pura das relações e das proporções que independa das peculiaridades de cada objeto. É a "mathesis universalis", que Descartes então procura. A geometria e o manejo dos números, que aprendeu e tanto admira, devem ser só expressões dessa ciência geral e desconhecida. Para encontrá-la, é preciso unificar a matemática, superando a dicotomia entre forma e quantidade, entre grandeza contínua e grandeza discreta. Mas, como?

GEOMETRIA O elemento último e indivisível da extensão é o ponto, que, sendo adimensional, pode ser associado ao número. O deslocamento do ponto produz a linha; o deslocamento da linha produz a superfície; o deslocamento da superfície produz o sólido. Assim, a diversidade das formas geométricas pode ser reduzida à diversidade de movimentos de pontos. Tais movimentos, por sua vez, podem ser descritos por meio de equações algébricas.

Eureka! Os problemas da geometria podem ser traduzidos em problemas de álgebra, assumindo formas muito mais manejáveis. Nasce a geometria analítica, uma das maiores descobertas da matemática, que liberta a geometria da dependência das figuras (e portanto do limite da tridimensionalidade) e confere significado espacial às operações da álgebra. Em seguida, a descoberta da lei da refração, ou lei do seno, reforça a ideia de que sempre há uma estrutura matemática sob as aparências das coisas.

Descartes está a um passo da física: se o mundo físico é extensão e movimento, então é uma realidade mecânica, sujeita a leis quantificáveis. É a pá de cal no mundo animista, permeado de espíritos, e no mundo aristotélico das substâncias. O Deus cartesiano criou e conserva um mundo sem qualidades, aberto à razão e ao cálculo. O último resíduo da análise é o puro espaço geométrico no qual as coisas existem e se movem.

Porém, cuidado! É preciso não esquecer que no universo também há algo inextenso e capaz de pensar o espaço. Pois o eu do "cogito", ponto de partida de toda a construção, é só coisa pensante.

Extensão e pensamento são irredutíveis entre si. Eis, portanto, as duas realidades primárias do mundo. Elas se encontram no homem, só no homem, ser ambíguo, dotado de corpo, mas capaz de pensar. Fiel ao método, que exige ideias claras e distintas, avesso a conceitos mistos, Descartes constrói sua imagem dualista do homem, separado em alma pensante e corpo extenso. Corpos são máquinas, animais são autômatos. Eis o ponto de partida de seus amplos estudos em fisiologia.

RIGOR MATEMÁTICO Ao longo da vida, como se vê, Descartes buscou um c onhecimento unitário, sem transições bruscas entre os diferentes domínios. Desde a dúvida hiperbólica até a fisiologia animal, passando por Deus, o homem e o mundo, cada grupo de problemas se desdobra em um grupo de problemas afins, buscando-se garantir sempre a coerência do conjunto. O objetivo final desse esforço era estender o rigor matemático a todos os domínios.

A ideia não era descabida: durante séculos a física fora uma disciplina qualitativa, dominada por categorias vagas. Por que não se devia imaginar a possibilidade de replicar em outras áreas o espetacular êxito da física matemática recém-proposta por Galileu?

Era plausível, mas se revelou impossível. O avanço do conhecimento frustrou o sonho de Descartes. Com mais de 350 anos de distância é fácil criticá-lo, a começar por sua fé mística na razão, revelada em sonho, que gerou nele uma postura estreita e sectária. Na busca da verdade, os antigos colocavam em pé de igualdade e a demonstração analítica, fundada na lógica formal, e a argumentação dialética, que se move no campo do que é meramente provável e extrai conclusões verossímeis, tentando persuadir.

Descartes rompe essa longa tradição. Sua obsessão com a certeza e sua confiança no método o conduzem à armadilha minimalista do "cogito", da qual, realisticamente, não se pode sair. O argumento ontológico de santo Anselmo, que constrói a ponte entre eu e mundo, passando por Deus, não satisfaz: ele só garante que o conceito de existência é inseparável do conceito de perfeição, mas não que o ser perfeito exista de fato. Quem percebeu isso foi ninguém menos que santo Tomás de Aquino.

INCERTEZAS Creio que duas coisas deixariam Descartes especialmente chocado, se pudesse nos visitar. Ambas atingem o cerne de sua formulação. A primeira é que, em vez de a matemática eliminar as nossas incertezas, tornando tudo previsível, ela mesma foi penetrada por incertezas crescentes: trabalhamos cada vez mais com sistemas não lineares intrinsecamente imprevisíveis, descobrimos que muitas sentenças lógicas não são nem verdadeiras nem falsas, sabemos que não podemos medir todas as grandezas físicas e assim por diante. O zoológico atual das ciências exatas abriga animais bem estranhos, que Descartes nunca pôde imaginar.

O segundo desdobramento chocante ocorreu no terreno do método, que ele considerava sua maior descoberta. Ele usa conceitos -como infinito, contínuo e perfeição- que estão longe de ser claros e distintos, uma exigência sua. Mas o mais importante é que a ideia de um método científico positivo tem sido cada vez mais questionada.

Gaston Bachelard sugere que não há métodos perenes, pois todos envelhecem: "Chega sempre a hora em que o espírito científico só pode progredir se criar métodos novos" ("O Novo Espírito Científico", Tempo Brasileiro, 2000). Paul Feyrabend radicaliza essa ideia e propõe uma espécie de anarquismo metodológico: "O único princípio que não inibe o progresso é: tudo vale" ("Contra o Método", Editora Unesp, 2007). 

Karl Popper também se afasta da abordagem cartesiana. Para ele, a procura de um método é um problema sem solução, pois, quando buscamos um critério para distinguir o que é certo e o que não é, somos remetidos à questão de saber se esse critério é certo ou não, e assim indefinidamente. Nenhum critério nem mesmo êxitos técnicos ou previsões acertadas- permite demonstrar a veracidade de nenhuma teoria sobre o mundo real. Todas as teorias são conjecturas. O que diferencia as teorias científicas das demais é tão-somente que as primeiras são formuladas de maneiras que as deixam expostas à refutação.

Contra o programa de Descartes, Popper afirma que o conhecimento científico não acumula um estoque crescente de verdades irrefutáveis, pois vive imerso na dialética de conjecturas e refutações. As teorias válidas, em cada momento, são as que ainda não foram refutadas. Teorias incertas, ideias injustificadas e antecipações ousadas são essenciais ao progresso da ciência, pois desempenham o papel de programas de pesquisa. Sem elas, não há mutações.

ESPECULAÇÃO A história da ciência, nos últimos séculos, mostra bem isso. Nenhuma das grandes teorias científicas que aceitamos hoje surgiu ao modo cartesiano. Ao descrever a gravitação, Newton admitiu a ação à distância, que ele mesmo não sabia explicar (e que se mostrou inexplicável). Darwin propôs a evolução das espécies, mas não podia descrever como os organismos mantinham, herdavam e alteravam suas características.

A geração que criou a mecânica quântica tateou, literalmente, no escuro, mas mesmo assim não deixou de avançar. O cientista trabalha com dúvidas, lacunas e ambiguidades. A boa ciência contém um componente especulativo.

O programa de Descartes, é claro, não é o programa da filosofia e da ciência atuais. Ninguém mais se considera cartesiano. Mas talvez seja mais justo dizer que, de alguma forma, todos somos cartesianos. Descartes é um desses pensadores inescapáveis, cuja obra penetrou profundamente no espírito de nossa época e se confunde com ele, para o bem e para o mal. Não seríamos o que somos, sem ele.

Para não correr o risco de se enganar, decide considerar falso o que é só verossímil. Começa, pois, por submeter tudo à duvida. "Então, o que posso considerar verdadeiro?"

Faltava demonstrar que um novo pensamento sistemático poderia encontrar um caminho próprio para descobrir a verdade, construindo uma consistente teia de conceitos

O Deus cartesiano criou e conserva um mundo sem qualidades, aberto a razão e cálculo. O último resíduo da análise é o puro espaço geométrico no qual as coisas existem e se movem.

O avanço do conhecimento frustrou o sonho de Descartes. Com mais de 350 anos de distância é fácil criticá-lo, a começar pela fé mística na razão, revelada em sonho

Teorias incertas e ideias injustificadas são essenciais ao progresso da ciência. Nenhuma das grandes teorias científicas que aceitamos hoje surgiu ao modo cartesiano

domingo, 18 de setembro de 2011

Feijão transgênico tem venda liberada pela CTNBio

A Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) aprovou ontem a liberação comercial do feijão transgênico desenvolvido pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa). Esse é o primeiro organismo geneticamente modificado totalmente produzido por uma instituição nacional e o primeiro feijão transgênico do mundo.


"É um marco para a ciência brasileira", afirmou o coordenador do projeto, o pesquisador da Embrapa Francisco Aragão. "Uma prova, até para muitos pesquisadores que acreditavam o contrário, de que podemos desenvolver todas as etapas do projeto no País", completou.

A nova variedade é resistente ao mosaico dourado, uma doença identificada no Brasil na década de 50 que ganhou força nos anos 90 e atualmente representa um dos maiores problemas da cultura na América Latina. A expectativa é de que o produto esteja disponível para os consumidores dentro de dois anos.
A reunião que aprovou o feijão transgênico teve 15 votos favoráveis, 2 abstenções e 5 pedidos de complementos de informação.

Ainda não está definido se a Embrapa cobrará royalties por essa nova variedade. Uma corrente dentro da empresa defende o pagamento por produtores de semente. Uma prática que mudaria a tradição de dispensar qualquer tipo de cobrança para melhorias ou frutos de pesquisas relacionadas ao feijão - uma cultura característica principalmente de pequenos e médios agricultores.

Doença
Transmitido por um vírus, o mosaico dourado é encontrado em plantações de várias partes do País, com exceção do Rio Grande do Sul e parte de Santa Catarina. A estimativa é de que as perdas anuais provocadas pela doença variem entre 80 mil e 280 mil toneladas - quantia suficiente para alimentar até 10 milhões de pessoas.

"O uso de uma semente resistente à doença pode evitar perdas, reduzir a importação do produto e garantir que o alimento continue na mesa do brasileiro", disse Aragão. Ele observa que, todas as vezes em que há uma alta de preço do feijão, o consumo do produto cai.

"O problema é que, quando o preço baixa, nem todos voltam a incluir o produto no cardápio. Algo que preocupa bastante em termos de política alimentar", afirma o pesquisador.

A variação transgênica aprovada pela CTNBio começou a ser estudada por Aragão em 2000. Os primeiros estudos para combater o problema, no entanto, tiveram início dez anos antes. Foram investidos no projeto R$ 3,5 milhões. Quase cem pessoas e dez instituições de pesquisa participaram do trabalho.

"Foi um grande feito intelectual, que trará um impacto importante para vários setores da sociedade", afirmou o presidente da CTNBio, Edilson Paiva. Também integrante da Embrapa, Paiva sempre declarou publicamente ser favorável à aprovação da semente geneticamente modificada.

"Ela vai facilitar tremendamente a vida de produtores, que, para se livrar do risco de contaminação da plantação, usam enormes quantidades de inseticida", disse o presidente da CTNBio. "A introdução dessa planta trará um impacto positivo econômico, social e alimentar."

Paiva disse que a nova espécie traz uma composição química exatamente igual ao feijão não transgênico. "Eles fizeram algo equivalente à vacina, potencializando o sistema de defesa da planta." Aragão garantiu não haver riscos de contaminação da espécie transgênica para a comum. "Uma separação de 10 metros é suficiente para evitar o risco."

Liberação deve ser questionada na Justiça
A liberação comercial do feijão transgênico da Embrapa provocou inquietação entre cientistas e deve ser questionada na Justiça por organizações não governamentais. Cinco dos integrantes da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança consideraram insuficientes as informações contidas no relatório e pediram diligências.

Entre as lacunas apontadas está a suposta falta de estudos sobre o impacto do consumo do feijão entre animais em gestação e pesquisa sobre o comportamento do organismo geneticamente modificado em todos os biomas no Brasil.

"Foi um desrespeito à Constituição Federal, às regras da própria CTNBio", afirmou a advogada da Terra de Direitos, Ana Carolina Almeida. "Antes da aprovação, eles deveriam aguardar o envio de informações complementares e, se preciso, a realização de novos estudos."

A advogada está convicta de que o fato de a semente ter sido desenvolvida pela Embrapa levou integrantes do conselho a fazer uma análise pouco cuidadosa do projeto. "Uma empresa pública deveria dar o exemplo, mas não foi o que ocorreu. É uma vergonha", completou.

A Terra de Direitos deverá entrar na Justiça nos próximos dias questionando a legitimidade da aprovação. "A Constituição afirma que é dever preservar o patrimônio genético nacional. Liberar uma variedade transgênica sem estudos suficientes é uma afronta." Ela questiona também o fato de, no desenvolvimento da nova variedade de feijão, terem sido feitos 22 experimentos, dos quais 20 deram errado. "Não soubemos o que ocorreu."

O líder da pesquisa, Francisco Brandão, afirma que os questionamentos são indevidos. "Fizemos estudos entre 2005 e 2010. Verificamos não haver risco ao meio ambiente."

Trabalho e Dialética: Hegel, Marx e a teoria social do devir

Em seu novo livro, Trabalho e dialética: Hegel, Marx e a teoria social do devir, o professor de filosofia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Jesus Ranieri demonstra a atualidade e relevância das contribuições de G. W. F. Hegel, Karl Marx e György Lukács em uma análise que busca responder aos impasses teóricos, éticos e sociopolíticos abertos pela crise permanente da modernidade. Nesta obra, o autor aponta semelhanças profundas entre o conjunto de seu trabalho e a interpretação lukacsiana da obra de Hegel, para ele uma das mais originais e férteis, principalmente no que diz respeito à influência deste no pensamento de Marx.

“Lukács nos permite perceber uma unidade entre Hegel e Marx que não é possível encontrar de forma nítida nem nos próprios textos marxianos, assim como nos deixa igualmente visualizar a propensão materialista de Hegel”, afirma na introdução.

Oswaldo Giacoia Junior, prefaciador do livro, destaca três linhas de força que resumem o essencial da retomada de Hegel por Jesus Ranieri. Primeiro, o reconhecimento da importância da processualidade e do devir para a inteligência do real, na medida em que “mais decisivo que o ser é o processo pelo qual este se produz, em sua necessidade”. Segundo, a interpretação do débito de Marx com a teoria social de Hegel, que prepara as bases para uma concepção materialista dos processos históricos e vê no trabalho a condição pressuposta para todo desenvolvimento do ser.

Por fim, o terceiro operador teórico diz respeito à função das contradições no pensamento de Hegel e Marx, e é explicado por Ranieri como a forma e a matéria do agir humano no mundo, o motor do movimento da realidade, no sentido de que todo avanço, sendo ou não sinônimo de progresso, contrapõe-se a forças que o contradizem e é responsável pela definição da identidade de qualquer objeto. “O texto de Jesus Ranieri combina, de maneira equilibrada, forma e conteúdo, método e resultado”, conclui Giacoia.

Após traduzir diretamente dos originais os Manuscritos econômico-filosóficos (Boitempo, 2004), de Karl Marx, e publicar o livro A câmara escura (Boitempo, 2001), no qual dissecou parte importante das categorias presentes em obras seminais do filósofo alemão, Ranieri dá continuidade a uma análise rigorosa dos conceitos de alienação [Entäusserung] e estranhamento [Entfremdung]. O autor explora com densidade o lugar dessas categorias na formação histórica do espírito, como elemento que cria e, ao mesmo tempo, confronta-se com uma realidade que se faz estranha a ele mesmo.

“Este estudo ofereceu um avanço substantivo à distinção, tanto terminológica quanto categorial, dos termos”, afirma Ricardo Antunes, professor de sociologia da Unicamp, para quem o centro da reflexão do novo livro de Ranieri é o ato de trabalho como momento de reprodução social, indicado por Hegel, e inserido por Marx em uma totalidade dinâmica e desenvolvida, em que o ser social aparece tanto no início quanto no fim do processo.

Trecho do livro
“Não é possível compreender o lugar do trabalho na reprodução da vida humana sem considerar que ele representa, além dessa reprodução, o caráter abstrato (ou seja, conceitual) de incorporação de necessidades que aparecem para nós como elementos constituintes de nossa existência, em um complexo que avança para além da mera elaboração de produtos.

Nesse sentido é que o trabalho é propriamente o ‘princípio do novo’, algo vinculado à ‘categoria de gênese do social’ – a história do homem e o comportamento humano só podem ser compreendidos por meio de uma teoria das necessidades, uma vez que a gênese de nossa estrutura mental (formada a partir do trabalho) nos leva ao constante embate com toda e qualquer ‘estaticidade’.”


Sobre o autor
Jesus Ranieri é professor livre-docente do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), autor de A câmara escura: alienação e estranhamento em Marx (Boitempo, 2001) e tradutor de Manuscritos econômico-filosóficos, de Karl Marx(Boitempo, 2004).

O passado como fuga e aprendizado

Em Meia-noite em Paris, Woody Allen tece críticas ao modo de vida estadunidense e exalta “anos de ouro” de Paris
 
Por Miguel Yoshida
Cena do filme Meia-noite em Paris,
do diretor estadunidense Woody Allen - Foto: divulgação


O filme Meia-noite em Paris, a mais recente produção do diretor estadunidense Woody Allen, em cartaz nos cinemas desde junho, tem se mostrado um grande sucesso de público e de crítica. Allen, hoje com 75 anos de idade, desde que iniciou a sua carreira como diretor de cinema – antes foi comediante em pequenos bares nos Estados Unidos – tem conseguido realizar quase um filme por ano, contando com quase 50 filmes já feitos.

Uma grande proeza se levarmos em conta que seus filmes não seguem o modelo das produções culturais de Hollywood: grande orçamento, grande publicidade, um roteiro muito pobre e um final feliz. Ele consegue de forma quase sempre brilhante aliar uma boa narrativa, um ótimo trabalho com atores e atrizes e uma crítica ao modelo de sociedade estadunidense com tons de comédia ou drama.



 Paris dos anos de 1920
Ao longo de sua carreira, é recorrente o tema dos conflitos familiares, sobretudo entre casais, em suas mais diversas formas. Em Meia-noite em Paris, o fio narrativo se dá a partir do conflito de jovens estadunidenses prestes a se casarem.

Na produção deste ano, a história se desenrola a partir do drama vivido por Gil Pender, um bem-sucedido roteirista da indústria cinematográfica de Hollywood apaixonado pela cidade de Paris e por sua noiva Inez, que passa férias com ele na cidade francesa. Gil, descontente com seu trabalho, para ele cada vez mais vazio de sentido, está em busca de seu sonho: tornar-se escritor de romances, buscando, com isso, fugir da produção em série de roteiros de filmes enlatados. A necessidade de manter o alto padrão de vida por ele alcançado – e desejado por sua noiva – é um dos nós que o impossibilitam de romper com seu trabalho e com a vida que leva.

Isso se constitui como uma grande contradição para Gil, pois ele também é um amante da tradição clássica da literatura, da música e das artes plásticas que havia na Paris dos anos 1920 e que compunham uma grande efervescência artística. Lá viviam grandes escritores como Scott Fitzgerald, Ernst Hemingway, Gertrude Stein; os três, estadunidenses que migraram para França; André Breton, importante figura do movimento surrealista na literatura; artistas plásticos do calibre de Pablo Picasso, Salvador Dali, Modigliani; cineastas como Luis Buñuel; músicos como Cole Porter, reconhecido compositor de trilhas sonoras de musicais e de produções cinematográficas; entre outros.

É nessa tradição que Gil Pender se inspira para escrever seu romance e fugir do modelo de vida estadunidense (o “american way of life”). É a propósito da escrita de se livro que um dia ele descobre uma espécie de “túnel do tempo” em uma pequena rua de Paris, onde após à meia-noite ele pode voltar à cidade das luzes da década de 1920 e conviver e encontrar com todos os artistas mencionados.

Volta ao passado
A importância de se refletir sobre esse filme vai além de compreender o seu sucesso de bilheteria; está, sobretudo, nas questões que aborda de forma crítica. Uma delas é a tensa relação que Gil mantém com seu sogro – um empresário estadunidense que está em Paris a negócios, defensor de posições conservadoras e reacionárias de grupos de direita dos EUA como, por exemplo, o Tea Party – nos mais diferentes aspectos: políticos, ideológicos, artísticos, sociais etc.

Outro tema brilhantemente abordado é como as relações conjugais são mantidas principalmente pela sua aparência. Isso fica evidente na relação entre Gil e Inez, cujas perspectivas de vida são completamente diferentes, mas que, por estarem noivos, devem levar em frente o relacionamento e perpetuar o modelo estadunidense de família.

A paixão de Gil pela Paris dos anos 1920 traz duas questões a se refletir. A primeira delas é que a partir de seu descontentamento com o presente – do qual ele é um crítico cético – ele irá buscar no passado o seu ideal de vida; a segunda é a relevância da produção cultural e artística de alta qualidade estética produzida nas diferentes épocas.

Com relação ao primeiro aspecto, a volta ao passado se configura primeiramente como fuga, para depois se tornar aprendizado que influenciará sua decisão frente ao presente. O segundo aspecto se vincula ao primeiro, pois a convivência com os que se tornaram grandes artistas do século 20 constitui parte do aprendizado de Gil.

Outro aspecto que merece uma detida reflexão é a decisão que Gil Pender toma, após ter aprendido com a história, com relação ao seu futuro. Estão colocadas para ele a opção de seguir a vida tal como está, trabalhando como roteirista, se casar com Inez e manter as aparências frente à sociedade, ou romper com isso e ficar em Paris, caminhando na chuva, se reinventando como escritor e construindo uma nova vida.

Miguel Yoshida é editor da editora Expressão Popular

Fonte: Brasil de Fato